O ABUTRE E A MÍDIA QUE SANGRA NOTÍCIAS PARA SUA DIVERSÃO

quinta-feira, outubro 15, 2015 Marcos Henrique de Oliveira 0 Comments


Todos os seres vivos tremem diante da violência. Todos temem a morte, todos amam a vida. Projete você mesmo em todas as criaturas. Então, a quem você poderá ferir? Que mal você poderá fazer? - Buda
Em um tempo, não muito distante, homens se digladiavam em arenas, lutando contra si mesmos ou contra animais. Em um espetáculo fabuloso e sangrento, a humanidade era deixada de lado para aplacar a sede de um povo faminto de muito mais coisas além do que apenas a falta de comida e trabalho: entretenimento. Para os reis, essa era a melhor forma de desviar a atenção do povo para o que realmente acontecia em suas vidas, uma via de escape, um bode expiatório para frustrações cotidianas. Mas nós evoluímos, não é?

  
O Abutre (Nightcrawler, 2014) parece sintonizar que não. A violência tem sido uma pedra no sapato da humanidade, exatamente por ser o que é, parte integrante do animal humano pensante. A violência do leão não incomoda o leão porque ele não pensa (nisso). Nossa razão luta contra este instinto básico que garantiu nossa sobrevivência em tempos mais inóspitos mas que agora precisa ser exorcizada por mantras calminhos, frases de amor e carinho nas redes sociais e dancinhas de mãos dadas. A pergunta que fica é: pra onde vai a violência quando ela não pode se manifestar, livremente, em você?


O personagem de Jake Gyllenhaal (em uma brilhante atuação) talvez tenha a resposta. A primeira cena de O Abutre é tão emblemática para entender as motivações do egocêntrico e megalomaníaco Louis Bloom, que você deveria assistir novamente quando o filme terminar. Desempregado, Bloom vive de pequenos roubos para se manter até que enxerga uma oportunidade na cobertura sensacionalista de acidentes e tragédias noturnas. Bloom tem muitas ideias na cabeça mas nenhuma câmera nas mãos. É quando ele decide partir para uma jornada que conhecemos muitos bem.


Para manter, debilmente, uma sociedade moderna, o ser humano precisou reinventar sua própria violência. O futebol nasceu de um jogo de guerra maia (onde a "bola" seria a cabeça de um adversário) e assim também foi com o xadrez. O octógono das lutas de MMA é a nossa nova arena de combate e antes dele, o ringue de boxe. O Rugby, o futebol americano, a caça a raposa, existem vários exemplos de como suprir e suprimir o instinto da violência. Porém, nenhum deles supera a nossa maior invenção: os noticiários. Nada mais civilizado do que poder sentar com uma cerveja na mão e deixar o sangue jorrar na telinha, não é?


Em O Abutre, quase não existe a violência gráfica como tripas e sangue. O diretor e roteirista Dan Gilroy (que dirigiu O Legado Bourne, 2012) foi esperto ao centrar essa necessidade apenas no protagonista. Nightcrawler (título original) é uma espécie de minhoca que sai da terra apenas a noite, muito usada em pescaria. Louis Bloom é um verme, um parasita que se alimenta do que puder e como puder. Uma das sacadas mais legais de Gilroy foi colocar todos os clichês possíveis sobre engrandecimento pessoal e autoajuda na boca de Bloom. Ele fala como um vendedor de carros usados, um palestrante empresarial, um pregador de um programa religioso. Ele fala o que você quer ouvir para ser aceito em sua loucura justificada e, neste sentido, o termo abutre se encaixa perfeitamente.


É difícil se lembrar o que passava na televisão uma ou duas décadas atrás. Hoje, a programação é centrada na agressividade, uma exposição diária do mal que "os outros" podem fazer, matando, roubando e mutilando. Não o espectador, esse exemplo de civilidade que se horroriza com os atos alheios mas não percebe que briga por uma vaga no shopping e xinga no trânsito, que educa o filho com tapas no traseiro e quebra o pau se o time perde.

Negar nossa violência, transferir nossas necessidades de extravasar descontentamento é o combustível que inflama tudo que você assiste e vai continuar assistindo na televisão e no cinema. E como um acidente que acontece na beira da estrada, você não consegue desviar o olhar. Não precisa se desculpar, você é humano, lembra?

Louis Bloom é certamente louco mas não mais do que você e eu. E tão ou mais humano do que nós dois porque ele aceitou seu papel de predador covarde. Ele abraça a violência como o leão que morde a jugular da zebra, sem culpa e abertamente contente. Após assistir O Abutre, talvez você se sinta muito calmo. Não estranhe. É porque foi já foi alimentado.

Até a próxima! 


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