12 CONTOS - FEVEREIRO

quinta-feira, fevereiro 24, 2011 Marcos Henrique de Oliveira 1 Comments


PROIBIDA A PASSAGEM, dizia a velha placa de ferro em frente ao pier. "Antes era de madeira", Fevriye* pensou. Apesar de fechado por segurança (a estrutura já estava meio podre por causa da ação do tempo e da água salgada, diziam), ela saltou a corrente de ferro sem hesitar. O pier era "seu lugar" desde os 14 anos, talvez antes. Uma breve memória de estar pendurada nos ombros de seu pai, agitando-se e apontando os navios e gaivotas, passou por sua cabeça. Agora os navios não passavam mais. E papai havia partido faz tempo. Mas algumas gaivotas ainda estavam lá.

Descalça, caminhou com cuidado em direção a ponta. Não queria que uma farpa de madeira estragasse sua missão. A pulseira feita de coquinhos e guizos, presa em seu tornozelo, chacoalhava e imitava um chocalho que sibilava baixinho. Os ventos agitavam seu vestido branco de algodão e brincavam com seus cabelos  longos e negros. Algumas das pétalas das flores que carregava de encontro ao peito, voaram livres em pequenos círculos. A Natureza sabia que ela estava ali. As Loas* estavam presentes.

Fevriye sentiu o calor que emanava do mar assim que chegou na ponta do pier. "Ainda, não. Espere", ela sussurrou baixinho de forma carinhosa mas em tom de comando. Aos 28 anos, toda mulher deve conhecer seu Iwa*, seu poder e sua natureza essencial. A vida não faz sentido sem isso. Para servir a si mesma e ao seu povo, Fevriye deveria tornar-se Manbo*. Fevriye deveria morrer.

Ela retirou um pequeno frasco guardado dentre as flores, jogou um pouco sobre a própria cabeça e o restante no mar a sua frente. Subitamente, Fevriye sentiu uma pressão em sua nuca e curvou-se sem querer. Antes que as flores caíssem de suas mãos para encontrar as águas geladas abaixo do pier, ela já estava dançando. "Bondje!"*, ela gritou.

Fevriye girou, girou e girou de olhos fechados . Seu pai, sua mãe  e seus avós dançavam em torno dela. Os avós de seus avós dançavam em torno dela. Cada passo parecia coreografado e seu corpo pendulava como se desejasse ser lançado ao mar para depois voltar ao pier.  

Fevriye viu-se aos 7 anos nos ombros de seu pai, aos 9 no enterro de sua mãe, aos 12 no hospital por causa de uma febre desconhecida. Viu-se ao 21 nos braços de seu futuro marido. Fevriye despediu-se de todos e abraçou todos como o vento que a segurava. Beijou a face de cada familiar e sorriu para todas as crianças e meninas que já foi um dia e deixou-as partir com uma benção nos lábios. Rodopiou. E caiu no mar.

O impacto com a água salgada e fria, tirou-a do transe. Ao abrir os olhos, por um instante, achou ter visto a figura de um homem ao seu lado, vigilante e sereno. Fevriye nadou com tranquilidade até a praia. Não tinha medo. O mar agora era o seu elemento. Ela foi aceita. 

No horizonte, o sol lançava raios coloridos em sua direção. Era o inicio de seu Sèvis Gine* e ela estava feliz. Feliz como uma criança. Não, não como uma criança. Como uma mulher. A mulher feliz que  Fevriye nasceu para ser.


Fevereiro - É o segundo mês do ano, pelo calendário gregoriano. Tem a duração de 28 dias, a não ser em anos bissextos, em que é adicionado um dia a este mês. Já existiram três dias 30 de Fevereiro na história. O nome fevereiro vem do latim februarius, inspirado em Februus, deus da morte e da purificação na mitologia etrusca. Originariamente, fevereiro possuía 29 dias e 30 como ano bissexto, mas por exigência do Imperador César Augusto, de Roma, um de seus dias passou para o mês de agosto, para que o mesmo ficasse com 31 dias, semelhante a julho, mês batizado assim em homenagem ao Imperador Júlio César.

Fevriye - Fevereiro na língua crioulo- Haitiano.
Loas - Deuses do culto Vodu haitiano, semelhantes aos Orixás do Candomblé.
Iwa - os espíritos da religião Vodu praticada no Haiti.
Manbo
- corresponde ao grau de sacerdotisa na religião Vodu.
Bondje - Deus do culto Vodu haitiano considerado como o criador de tudo (do francês "bon Dieu" ou "bom deus")
Sèvis Gine - ou "serviço africano" é o nome dado ao culto da religião Vodu.

Fontes:

1 comentários:

Sarinha disse...

Me lembram os contos do Neil Gaiman... ^^