NIETZSCHE, SANTA CLAUS E O FANTASMA DO NATAL PASSADO

quarta-feira, dezembro 23, 2015 Marcos Henrique de Oliveira 0 Comments



Já deveria ser tarde da noite quando o velho ouviu um barulho no andar inferior (difícil saber, já que no Polo Norte, quase todo dia é noite). Com um chiado de desagrado, o velho levantou pesadamente da cama, coçou sua longa barba branca e calçou suas botas pretas. Será que era Rubert, novamente tentando beber o chocolate quente que ficava em cima da lareira? Se fosse, iria levar uma bronca. Todo ano a mesma coisa...

Mas não era. Um homem de corpo franzino, bigode vasto (no estilo escova) e olhar meio perdido estava sentado na cadeira preferida de Claus, pernas cruzadas, olhando para o fogo que ardia na lareira. "Wil?", exclamou o velho, "Wil, meu Deus, o que faz aqui a esta hora?"

"Você não sabe que horas são e Deus está morto, Claus", respondeu Nietzsche com uma certa ironia.

"Ho, ho, ho", replicou Noel na mesma moeda enquanto puxava um banquinho para perto do amigo. "Certo, já que está aqui e me acordou, o que posso fazer por você? Eu pensei que só iria vê-lo no dia dos Debates de Aniversário. Está meio adiantado, não acha?"

Para quem não sabe, os encontros dos Debates de Aniversário fazem parte da agenda cheia de Noel. Pessoas fazem aniversários todos os dias (inclusive as que já não estão mais no Mundo) e cabe a Noel escolher o presente de todos. Para "pessoas" como Nietzsche, existem os Debates de Aniversários, onde filósofos, escritores e artistas de todos os tipos se encontram para conversar e trocar presentes. Ano passado (ou será que foi ontem?), Noel ganhou uma guitarra do Hendrix. Pena que ainda não aprendeu a tocar.

"Não há fatos eternos, como não há verdades absolutas", replicou Nietzsche com uma certa acidez. "As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras, meu velho amigo. Em última análise, amam-se os nossos desejos, e não o objeto desses desejos", completou em um suspiro.

Noel olhou para o homem com uma certa compaixão e uma breve lembrança de como ele era mal entendido no tempo que passou pela Terra. Louco e delirante, gênio e incapaz, miserável e tolo, todas as qualidades de alguém que já nasceu diferente. "Wil, não prefere esperar pelos outros para ter essa conversa?", disse com delicadeza, colocando a mão no ombro do amigo. "Tenho certeza que Einstein ou até mesmo Rasputin adorariam ouvir você falar. Eu não sou muito bom com filosofia e..."

Nietzsche levantou-se de surpresa, um pulo que fez até a Árvore de Natal balançar. Diga-se de passagem que esta não é uma árvore comum mas A Árvore. Com 34 metros de altura, ela pode ser vista (por quem pode ver) de qualquer parte do Polo Norte e fica decorada e iluminada durante toda a Eternidade (o que é bastante). Todo e qualquer pedido endereçado à Noel aparece na Árvore que é monitorada, diariamente, por um duende. Nenhum presente é esquecido. Nunca. A não ser que seja pelos humanos. Aí...nem Noel salva. 

"Claus, preste atenção", disse Nietzsche com um semblante tão severo que quase sugou todo o ar do ambiente. "Minha visita inesperada possui um objetivo nefasto para você, mesmo que necessário. Vim para acabar com o Natal".

Noel é o ser mais calmo que poderia ter sido criado. Mesmo quando as renas bagunçam a Oficina dos Presentes Imaginados (e, acredite, dá um trabalhão para arrumar), ele não se abala e até se diverte. Mesmo quando os anões e duendes resolvem brigar para saber quem são os verdadeiros donos das montanhas, ele acha graça. Mas agora, não. Wil tinha passado dos limites. Reunindo uma paciência de séculos, resultado da leitura de cartas e mais cartas com o mesmo texto, Noel limitou-se a dizer "por quê?"

"O homem procura um princípio em nome do qual possa desprezar o homem. Inventa outro mundo para poder caluniar e sujar este; de fato só capta o nada e faz desse nada um Deus, uma verdade, chamados a julgar e condenar esta existência.", gritou Nietzsche com os olhos vermelhos e esbugalhados. "O homem é uma corda esticada entre o animal e o super-homem, uma corda por cima do abismo", vociferou. 

Noel piscou umas três vezes, como se tudo aquilo fosse um sonho e precisasse acordar. Wil estava tendo mais um dos seus famosos ataques contra a humanidade da qual, uma vez, já fez parte. Era preciso ter cautela. Da última vez, a essência de Wil quase se desintegrou e isso é perigoso. Quando um autor se desfragmenta, sua obra terrena é esquecida. Ninguém mais lembra quem ele foi ou sua importância. Noel não deixaria isso acontecer com Wil. O mundo (qualquer um deles), precisa de pensadores loucos como Wil. 

"Wil, me escute por um momento", Noel estava tentado escolher as palavras. "Você sabe bem que eu estou por aqui faz algum tempo, não é? Quando veio para cá, você descobriu que sou eu quem coloca a ideia de presentar na cabeça de cada homem, mulher e criança lá no Mundo deles, em todas as datas ou em nenhuma data. Tem ideia do porquê disso?"

Nietzsche olhou para Noel com certa desconfiança (ou paranoia mesmo). Desviou o olhar por um breve momento, pensativo. "Quem só tem o espírito da história não compreendeu a lição da vida e tem sempre de retomá-la. É em ti mesmo que se coloca o enigma da existência: ninguém o pode resolver senão tu!", replicou como uma criança teimosa.

"Exatamente!", respondeu Noel com um sorriso de propaganda de refrigerante. "Esse é o ponto, meu caro: nosso trabalho é lembra-los eternamente de que ainda é possível sonhar, amar e mesmo perdoar uns aos outros". Noel começou a se empolgar com as próprias palavras. "Você não imagina, Wil, o trabalho que tenho com toda a bagunça que fizeram nos últimos cem anos. Antigamente, uma boneca de pano e um cavalo de madeira, um machado novo ou um belo vestido de domingo, davam conta do recado. Os presentes mais simples contavam histórias que despertavam, por si só, a imaginação. Histórias de amor verdadeiro, de fantasia, de saudade sincera e de trabalho honesto". Noel baixou a cabeça, desolado. "Hoje, não tem mais história. Os humanos querem tudo pronto, caro e mastigado. Gastam tempo e suas moedas em coisas que eu nem entendo. Mas não podemos desistir, Wil. Manter as histórias vivas. Esse é o nosso trabalho".

Nietzsche olhou para o rosto enrugado de Noel e viu, talvez pela primeira vez, o espelho de cada homem que já existiu. Ele viu o Noel que escolheu incenso, mirra e ouro para os Três Reis Sábios presentearem uma criança recém-nascida. Ele viu a magia que inspirava os enamorados a trocarem juras de amor, acompanhadas de chocolate e joias e também as crianças que riam enquanto procuravam por ovinhos escondidos pelos pais. Nietzsche viu o amigo Claus como o Papai Noel que sempre foi, o único que sempre existiu. E Nietzsche, disfarçadamente, chorou.

"Eu não sei sair nem entrar, sou tudo aquilo que não sabe nem sair nem entrar", respondeu como uma desculpa. "Amizade é quando duas pessoas se unem em busca de alguma verdade mais elevada e neste momento, meu querido Claus, você firmou, não só a nossa amizade, mas o amor verdadeiro que nutre pelos humanos por mais um ano. Que a verdade se revele, então".

De repente, um brilho amarelo apareceu nos olhos de Nietzsche, seu rosto foi ficando cinzento e prateado e um vento forte abriu as portas e janelas. A sala foi preenchida pelo ar polar que brincava com flocos de neve. A lareira se apagou e uma fumaça densa cobriu quase todo o ambiente. Noel saltou para trás, arregalando os olhos para transformação que ocorria diante de si.

"Então, era você!", gritou Noel contra o vento. "Fantasma do Natal Passado, seu malandro!"

A figura incorpórea de quase quatro metros, pairava no ar com seu manto branco, vermelho e preto (provavelmente para ocasião, já que era mais chegado a um cinza básico). "Ora, Claus", falou com uma voz que parecia vir do além-mundo, "você bem sabe que venho sem avisar, para pegá-lo de surpresa todos os ano e conferir se ainda acredita na sua e na nossa missão. Me sai bem, não foi?". E soltou um som que "quase" parecia uma risada de contentamento (mas era de arrepiar, mesmo assim).

Noel se levantou, batendo a neve da roupa molhada. Mal podia acreditar que havia caído nessa!

"Mas tinha que se disfarçar logo de Nietzsche?", disse em tom de piada. "Vocês, Antepassados, devem passar um bom tempo bolando essas coisas!"

O ser espectral lançou seus mil olhos (até onde dava pra contar) em direção ao bom velhinho. "Mesmo assim, você se comportou muito bem, como sempre. Nem sei porque ainda me mandam fazer isso, depois de vinte-e-um séculos. Enquanto você existir, Santa Claus, ainda teremos esperança pelos homens."

Noel corou um pouco mais do que o normal e tentou disfarçar. "Ora, pare com isso e vamos trabalhar. Já que está aqui, que tal me ajudar a conferir a lista deste ano?" E deu uma piscadinha.

Então, saíram os dois pela porta em direção a enorme Oficina dos Presentes Imaginados, rindo e relembrando histórias dos Natais passados.

E Nietzsche apareceu no dia (ou será noite?) seguinte, louco e desvairado, fazendo perguntas e afirmações difíceis como sempre.


***FIM***

P.S.: Este texto veio de um ensaio para um livro que não saiu (quem sabe um dia).

Para Nietzsche e todos os pensadores que já existiram e para todos os leitores do AGE, um Feliz Natal e um Ano Novo cheio de oportunidades de crescer e imaginar(se) diferente. Sorte, saúde e prosperidade em 2016!

Até a próxima!

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