Ele me deu um beijo na boca

quarta-feira, setembro 29, 2010 Marcos Henrique de Oliveira 1 Comments

Do álbum de 1982, Cores, Nomes traz na contracapa a foto de um beijo entre Seu Zezinho, pai do Caetano e ele, o que corresponde a um detalhe estético curioso, e de certa forma, reverencia a faixa do disco.

Talvez um dos mais líricos e sensuais discos de Caetano, nem por isso menos politizado, o álbum traz na faixa “Ele me deu um beijo na boca” um deleite filosófico e intimista. Há alí uma conversa, mais que isso, uma história é contada. Dentro dela, muitas outras sobre liberdade, poesia, humanidade e filosofia. Tudo isso regado a mais agridoce baianidade deste poeta marcante.

Realmente, essa letra-protesto é um beijo na boca, uma metáfora pop surrealista com direito a abordagem política e cultural daquela década. A Imprensa, inúmeras vezes atingida pelas audaciosas atuações do cantor aparece como um alvo certeiro, sutilmente identificado nas figuras do capitalismo que alimentou a Pop Art durante o último século e até hoje.

O ano era 1982 e nesta década dava início no Brasil uma grande repercussão do poder dos meios de comunicação em diversos aspectos da vida cotidiana. Ao mesmo tempo, o trabalho de Caetano também ganhava mais projeção internacional. 

E não é a única vez que Caetano polemiza palavras como boca, beijo e língua. Na música Língua, há a frase: “Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões” é uma forma explicitar seu gosto pelo estilo barroco. Pois é. Na verdade, os eu-líricos do poeta geram tanta prosa que só podiam acabar em poesia...

Também são motivos de poesia na música a referência a grupos contestadores como os Punks e os Hippies, entre outros, pois durante as décadas de 80 e 90 os grupos e os ideais de contracultura ainda eram assuntos bem debatidos na Imprensa e na política em geral.  Aqui, eles parecem ser convocados para contestar juntos. Pra curtir:


Ele me deu um beijo na boca e me disse       
A vida é oca como a toca
De um bebê sem cabeça
E eu ri a beça
E ele: como uma toca de raposa bêbada
E eu disse: chega da sua conversa
De poça sem fundo
Eu sei que o mundo
É um fluxo sem leito
E e só no oco do seu peito
Que corre um rio
Mas ele concordou que a vida é boa
Embora seja apenas a coroa :
A cara é o vazio
E ele riu e riu e ria
E eu disse: Basta de filosofia
A mim me bastava que o prefeito desse um jeito
Na cidade da Bahia
Esse feito afetaria toda a gente da terra
E nós veríamos nascer uma paz quente
Os filhos da guerra fria
Seria um antiacidente
Como uma rima
Desativando a trama daquela profecia
Que o Vicente me contou
Segundo a Astronomia
Que em Novembro do ano que inicia
Sete astros se alinharão em escorpião
Como só no dia da bomba de Hiroshima

E ele me olhou
De cima e disse assim pra mim
Delfim, Margareth Tatcher, Menahem Begin
Política é o fim
E a crítica que não toque na poesia
O Time Magazine quer dizer que os Rolling Stones
Já não cabem no mundo do Time Magazine
Mas eu digo (Ele disse)
Que o que já não cabe é o Time Magazine
No mundo dos Rollings Stones Forever Rockin´And Rolling
Por que forjar desprezo pelo vivos
E fomentar desejos reativos
Apaches, Punks, Existencialistas, Hippies, Beatniks
De todos os Tempos Univos
E eu disse sim, mas sim, mas não nem isso
Apenas alguns santos, se tantos, nos seus cantos
E sozinhos
Mas ele me falou: Você tá triste
Porque a tua dama te abandona
E você não resiste, Quando ela surge
Ela vem e instaura o seu cosmético caótico
Você começa olhar com olho gótico
De cristão legítimo
Mas eu sou preto, meu nego
Eu sei que isso não nega e até ativa
O velho ritmo mulato
E o leão ruge
O fato é que há um istmo
Entre meu Deus
E seus Deuses
Eu sou do clã do Djavan
Você é fã do Donato
E não nos interessa a tripe cristã
De Dilan Zimerman
E ele ainda diria mais
Mas a canção tem que acabar
E eu respondi:
O Deus que você sente é o deus dos santos:
A superfície iridescente da bola oca,
Meus deuses são cabeças de bebês sem touca
Era um momento sem medo e sem desejo
Ele me deu um beijo na boca
E eu correspondi àquele beijo
                                                                                                                
Istmo: parte estreita entre uma coisa e outra, terra que liga uma península ao continente
Iridescente: Que reflete as cores do arco-íris

1 comentários:

helena. disse...

"Na verdade, os eu-líricos do poeta geram tanta prosa que só podiam acabar em poesia" - adorei!:)